O debate a respeito da atualização de dados provocou reações, com alguns players vindo a público minimizar o fato de que:
Nem todos os dados do Censo 2022 foram divulgados até agora
Quando, na prática, estamos falando das informações de rendimento das famílias, que estão entre as mais importantes para a composição das bases geodemográficas.
Estimar esse tipo de informação, num contexto em que a versão mais recente disponível remete a 2010, traz uma série de questionamentos sobre como o trabalho é desenvolvido.
E, ao contrário de nossos colegas, não vamos alegar que temos um time “de profissionais que criam metodologias robustas”, como se isso fosse o bastante para você confiar nas projeções.
Até porque, não temos um time tão grande, tampouco acreditamos que isso nos faz falta.
Entenda
A preparação de nossas bases de dados segue passos de validação e consistência, mas nem sempre são as mesmas etapas.
O ponto de partida muda tudo, mas o molde mestre tem que ser um Censo, que é uma pesquisa universal, ou seja, não usa amostras, seu propósito é capturar um retrato do todo num determinado momento.
Quando temos um Censo, mesmo que a uma distância temporal significativa, podemos usá-lo como boa base para as projeções.
Depois do Censo, partimos para outras pesquisas menores, feitas sobre amostras representativas estatisticamente, por isso, mais recorrentes e atuais, como a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), Contagens Populacionais e outras.
Cenário em abril de 2025
O IBGE liberou o corpo principal das informações do Censo 2022 em novembro de 2024, mas ainda sem as informações de rendimento das famílias.
Essa divulgação parcial criou um dilema:
- Manter o molde mestre do Censo 2010 até que as informações de renda fossem liberadas
- Migrar para o molde do Censo 2022 e estimar as informações faltantes
Tal tipo de estimativa é um trabalho de grande monta, que, curiosamente, apenas a Mapfry veio a mencionar ter realizado.
Daí surgiu a dúvida, se as demais empresas realmente fizeram um trabalho desse porte, algo que seria uma vantagem competitiva sobre as demais, porque não disseram nada sobre isso?
A fórmula secreta
Falamos muito de projeções, visões de futuro ou aproximações de dados do passado para o presente.
Mas a demografia também pode ser uma ciência arqueológica, capaz de investigar eventos que aconteceram há muito tempo, ou mesmo em mundos imaginários.
Esse é o tamanho do seu poder, quando exercida com domínio técnico, ela é capaz de transformar fragmentos estatísticos em informações coesas.
A fim de demonstrar isso, vamos apresentar dois estudos poderosos: "English Familial Demography c. 1300: A Reconstruction" e "How Many Hobbits?", a análise demográfica da Terra Média, palco da série de livros de fantasia O Senhor dos Anéis.
English Familial Demography c. 1300
Para seu estudo sobre a população da Inglaterra por volta do ano de 1300, Hugo La Poutré e Richard Paping enfrentaram um desafio delicado: o período anterior à peste negra sempre foi uma zona de sombra estatística.
Poucas fontes, registros esparsos, e ainda assim, eles conseguem reconstruir um retrato plausível da Inglaterra medieval em seu auge populacional.
Como fizeram isso?
Partindo dos fragmentos de informações confiáveis e criando pequenos modelos de simulação dos demais.
As informações mais consistentes vieram das paróquias, que mantinham um registro de casamentos e nascimentos.
- Idade média ao casamento (24 anos para mulheres, 27 para homens)
- Expectativa de vida restante ao casar
- Tamanho médio dos domicílios (5,8 pessoas)
- Fecundidade conjugal
Esses fragmentos são combinados em um modelo de coerência interna: se A implica B, e B implica C, então é possível inferir D.
O resultado é um mundo estatisticamente verossímil, onde famílias tomam forma, vidas se desenrolam, e estruturas sociais emergem.
A Terra Média como estudo de caso
Agora imagine aplicar essa mesma lógica a um mundo que nunca existiu.
É exatamente o que faz o demógrafo Lyman Stone em "How Many Hobbits?".
A pergunta parece uma brincadeira, mas é um exercício sério de modelagem populacional:
E se a Terra Média fosse habitada sob os mesmos parâmetros de densidade agrícola e padrões demográficos da Europa Medieval?
Stone segmenta o mapa fictício em regiões reconhecíveis, estima a capacidade produtiva da terra, ajusta densidades baseando-se em geografia, clima e história.
O que emerge é surpreendente: um retrato coerente de uma sociedade semi-real.
A Terra Média, segundo sua análise, teria cerca de 6,8 milhões de habitantes, muito mais do que estimativas preliminares sugeriam.
Isso porque ele não parte dos exércitos que aparecem nos livros, mas sim da capacidade demográfica do território, usando analogias históricas e ecológicas reais.

Quadro demográfico da Terra Média
O que conecta a Inglaterra de 1300, a Terra Média e o Brasil de 2025?
Tudo!
Porque a Inglaterra de 1300, a Terra Média de Tolkien e o Brasil de hoje compartilham um mesmo desafio: compreender o que está ausente.
E isso é crucial neste momento de 2025, em que ainda aguardamos os dados de renda domiciliar do Censo de 2022.
Nossa capacidade de preencher essa lacuna estatística permite que as análises de nossos clientes possam continuar.
E essa é a mesma lição que tiramos dos trabalhos de Stone, La Poutré & Paping, não precisamos ficar paralisados diante da ausência de dados “oficiais”.
Podemos, desde que, com rigor técnico e bom senso demográfico, reconstruir realidades prováveis a partir de parâmetros conhecidos.
Foi assim que sempre fizemos para projetar e estimar populações em níveis tão granulares quanto o quarteirão, mas nunca tínhamos ido tão longe quanto agora, quando estimamos uma parte tão importante de um Censo.
Abrindo a caixa de ferramentas
Como dito, não temos um time com muitos especialistas, mas nossos especialistas dominam as muitas especialidades necessárias, como história, matemática, estatística, economia, e possuem uma boa dose de experiência e bom senso.
Então vamos tomar cuidado para não revelar demais, ao ponto de ajudar nossos concorrentes a melhorar suas estimativas.
Você vai perceber que os modelos mais complexos são, no fundo, apenas versões refinadas de uma pergunta muito simples: quantas pessoas vivem num lugar, e como vivem?
A equação básica da população
A fórmula mais fundamental da demografia é esta:
População futura = População atual + (Nascimentos e Imigrações) - (Óbitos e Emigrações)
Toda mudança populacional é o resultado de três fatores:
- Natalidade: quantas pessoas nascem
- Mortalidade: quantas pessoas morrem
- Migração: quantas entram e saem do território
A demografia moderna utiliza a Taxa de Fecundidade Total, que representa o número médio de filhos por mulher ao longo da vida reprodutiva.
Outros métodos
Uma fonte tão consistente e confiável quanto as paróquias e testamentos, são os exércitos.
Historicamente, para cada soldado em campo havia entre 60 a 120 civis apoiando economicamente, logisticamente e politicamente.
Sem fontes
A demografia também pode ser medida sem registros, desde que se apliquem as restrições lógicas e físicas.
E com eles, pode-se construir um mundo inteiro a partir do nada.
Cada ser raça, sejam humanos, hobbits ou elfos, precisa de terra, água, calorias, tempo para gestar e criar filhos.
Há limites para o tamanho de exércitos, para a densidade agrícola, para a expectativa de vida. Esses limites são conhecidos.
Lyman Stone, na análise da Terra Média, utiliza modelos de capacidade demográfica com base geográfica.
Dada uma determinada área e suas características ecológicas, políticas e geográficas, é possível estimar quantas pessoas ela pode sustentar com tecnologia pré-industrial.
Quadro de densidade populacional estimada por tipo de território
Regras de Coerência
Essas metodologias não operam isoladamente, o segredo está na coerência entre os métodos.
Quando um número calculado por densidade não casa com o número inferido por exército, ou com o número implícito nas estruturas familiares, algo está errado.
A demografia é um sistema de equações interdependentes.
Ela exige que:
- As taxas de natalidade sustentem a população projetada
- As taxas de mortalidade não contradigam a expectativa de vida presumida
- O número de soldados seja compatível com o número de homens em idade de combate
- O tamanho médio das famílias combine com o número de casas
É esse emaranhado de cruzamentos que nos permite construir modelos de mundos possíveis, sejam eles medievais, imaginários ou futuros.
E aqui chegamos ao ponto prático
Até o fim de abril, as bases geodemográficas das demais plataformas se encontram, em certa medida, às cegas.
Mas esse drama está para acabar, o IBGE programou a liberação da primeira parte das informações de renda para o final de abril.
Em pouco tempo, todas as plataformas de Geomarketing terão acesso às variáveis essenciais para seus dados de Potencial de Consumo, Classes Sociais e outras estimativas de mercado.
Mas esse episódio fica como evidência de quem soube aplicar as técnicas da demografia para estimar com boa precisão e quem só pôde esperar.
Isso faz toda a diferença nas pequenas projeções do dia a dia, que são mais difíceis de comparar.
Porque, no fim, não é sobre ter um grande time multidisciplinar, até porque a demografia vai além da manipulação de dados, é preciso ter sensibilidade e bom senso.
Bibliografia sobre demografia histórica e modelagem populacional
Wrigley, E. A., & Schofield, R. S. (1981). The Population History of England 1541–1871: A Reconstruction. Cambridge University Press.
La Poutré, H., & Paping, R. (2023). English Familial Demography c. 1300: A Reconstruction.
Hajnal, J. (1965). European Marriage Patterns in Perspective. In Population in History: Essays in Historical Demography (D. V. Glass & D. E. C. Eversley, eds.).
Reher, D. S. (1998). Family Ties in Western Europe: Persistent Contrasts. Population and Development Review, 24(2), 203–234.